Capítulo 1
Paris. 1921. Primavera.
Era por volta das 9h da manhã quando Sophie abriu a grande porta de madeira e vidro da varanda do seu quarto. Ela vestia apenas uma camisola branca que balançava levemente com a brisa do início de outono. Respirou fundo, olhando para a Torre Eiffel, fechou os olhos para sentir melhor o cheiro que a cidade exalava e sorriu, como se agradecesse por estar viva mais um dia e por ter aquela paisagem todas as manhãs. Acendeu seu cigarro e o tragou, com tanto charme, que parecia estar flertando com aquele pedaço de papel enrolado em fumo. Seus olhos verdes cintilavam sempre que observava com amor aquela cidade.
O mesmo ritual se repetia todos os dias. Num ritmo bucólico e solitário, ela se preparava para começar mais um dia. Geralmente, ela despertava mais tarde, mas naquela noite teve sonhos ruins e não conseguiu permanecer por muito tempo na cama, mesmo que tenha chegado tarde da noite, depois de ficar bebendo com seus amigos Café Guerbois. Às vezes as recordações dolorosas como um punhal em carne se faziam presente e ela tentava inundar sua mente com distrações, para simplesmente esquecer o passado.
Ao terminar seu cigarro, ela volta para dentro de seu quarto, calça um chinelo de pano confortável e se arrasta até a parte debaixo de sua casa. Quando termina de descer as escadas, escuta Marrion cantarolando enquanto regava as plantas do jardim e sente o cheiro de café se enganchar em seu olfato, como um anzol pescando um peixe grande.
– Bom dia, Marrion. – Sophie disse, se encostando do batente da porta e cruzando os braços, ainda preguiçosa. Marrion a olhou e sorriu, com um regador nas mãos.
– Bom dia, minha querida. Despertou cedo hoje. Vi a hora que chegou e pensei que não fosse sair da cama antes do meio dia.
– Fazia parte dos meus planos, mas motivos maiores não permitiram. – Disse entortando os lábios e com olhos tristes. Marrion já sabia exatamente do que se tratava e não se prolongou, pois sabia que Sophie não gostava de falar sobre aqueles assuntos.
– Compreendo. – Marrion fez uma pausa e continuou regando as plantas. – O café está fresco, os pães acabaram de chegar e as frutas que buscamos ontem estão ainda mais doces. Deixe-me terminar com essas plantas e preparo tudo para você.
– Não precisa se apressar. Estou com um pouco de ressaca. Bebemos vinho demais ontem.
– Esses seus amigos artistas ainda vão acabar com sua saúde.
– Eu não tenho saúde, minha querida Marrion. Nem física e muito menos mental. – Sophie sorriu e Marrion a olhou com as sobrancelhas erguidas, cara de brava. – Não adianta fazer essa cara, você sabe que é a verdade. Meus amigos apenas compartilham do mesmo estilo de vida que tenho cravado em mim. Não posso alterar isso.
– Mas pode ser menos dramática, talvez. – Marrion piscou para Sophie, que balançou a cabeça, sorrindo.
– Talvez. – Ela fez uma pausa. – As rosas estão lindas ainda. – Ela desceu a escada e se aproximou da roseira que estava com algumas rosas vermelhas escuras penduradas em seus galhos. – Incrível como as flores são as melhores obras de arte da natureza. Delicadas, suaves… – Sophie passava os dedos levemente entre as pétalas de uma rosa e seus pensamentos rolavam de acordo com as sensações que aquela flor trazia até ela. – Existe algo mais perfeito que uma flor, Marrion?
– Sim. Muitas coisas. – Respondeu Marrion, ainda banhando as plantas com a água de seu regador. – Ter um filho talvez seja tão perfeito quanto isso. Viver um amor verdadeiro ou simplesmente, realizar um grande sonho. Ter motivos para viver a vida é perfeito. Você deveria experimentar isso qualquer dia. – Marrion voltou para o lado de Sophie e observou a rosa também.
– Vou experimentar ter motivos para viver. – Sophie deu uma risadinha ácida. – E qual seria o seu motivo de viver?
– Cuidar de você, menina Sophie. Como prometi para seus pais que o faria. – Elas se olharam e Sophie sorriu sem mostrar os dentes. Apenas colocou a mão no ombro de Marrion e o apertou. Ela não gostava muito de demonstrações de afeto e nem sabia muito bem como fazer isso. Mas Marrion sabia que aquele gesto, era algo grandioso para Sophie.
– Venha, vou fazer um suco para tomarmos juntas. – Disse Sophie enquanto caminhava para dentro de sua casa.
Marrion cuidava sozinha da casa e de Sophie, desde quando seus pais haviam sofrido o acidente de barco no litoral francês, em 1916. Fazia 8 anos do acidente, Sophie tinha 30 anos e era filha única de um casal fantástico. Sua mãe Madeleine Magret era uma poetisa fabulosa e amava ler seus poemas para Sophie antes de dormir. Seu pai René era um grande produtor de café e gostava de viajar com sua família. Marrion estava trabalhando na família desde antes de Sophie nascer. Aos seus 53 anos, ela entrou para a família Magret com 22 anos, logo após as bodas de René e Madeleine. Acompanhou o nascimento de Sophie e seguia cuidando dela depois da morte de seus pais. Para Marrion, Sophie era a filha que ela nunca teve.
– E como foi a reunião de ontem? – Marrion perguntou, trazendo um queijo cremoso à mesa, para elas passarem nos pães e se sentando ao lado de Sophie.
– Divertida, como sempre. Ontem um artista espanhol chamado Salvador Dalí foi o centro das atenções. Ela só falava de animais e coisas sem muito sentido. Depois de tantas garrafas de vinho, tudo que ele dizia fazia mais sentido do que o trabalho de um relógio. – Sophie sorriu e mordeu um pedaço do pão puro.
– Passe o queijo, Sophie!
– Eu gosto de sentir o sabor puro das coisas. Você sabe.
– Sei. – Marrion passava o queijo e via Sophie beber o café em sua xícara. – E o que mais aconteceu? Recitaram poesias?
– Um pouco. Scott estava irritado. Ernest tão bêbado que não conseguia falar direito. Mas foi divertido. Gertrude apareceu por lá e ficou me provocando, para tentar me convencer a dar meus textos para ela ler.
– E por que não faz isso? – Marrion aproveitava sempre a primeira oportunidade para tentar fazer com que Sophie mostrasse seu trabalho para alguém. Mas ela era irredutível.
– Não. Já disse que não quero. Nem você, nem Gertrude Stein e nem ninguém, vai me convencer de fazer isso. – Esse era outro assunto que irritava um pouco Sophie.
– Você é boa, Sophie. Deveria pensar com carinho sobre isso. É jovem, tem 30 anos e pode ir muito longe, já que não precisa se preocupar em fazer isso para ganhar dinheiro, como a maioria.
– O que quer dizer com isso? – Sophie perguntou, um pouco ríspida.
– Seus pais deixaram uma boa condição financeira para você. Portanto não tem a pressão de ter que usar sua arte para sobreviver, compreende?
– Humm… Sim, compreendo. – Sophie puxou o jornal que estava em cima da mesa com uma mão e na outra segurava sua xícara de café. Tinha dado aquele assunto como encerrado.
Marrion não iria desistir nunca dessa guerra, por mais que perdesse todas as batalhas diárias contra o egoísmo rebelde de Sophie. Ambas continuaram o café da manhã em silêncio. Elas sabiam respeitar a ausência de palavras uma da outra.
Sophie era um cofre, ela guardava tudo dentro de si e não tinha a mínima vontade de compartilhar nada disso com ninguém. As únicas pessoas que tiveram a oportunidade de conhecer uma Sophie alegre de verdade, jovial e extrovertida, foram seus pais. Marrion nessa época também conheceu, por isso ela insiste. Ela sabe que Sophie como Sophie é de verdade. E acredita que um dia, ela possa voltar a sorrir sinceramente e intensamente.